Atração entre iguais
Texto Denis Russo Burgierman
Biólogo sacode a zoologia e revela que existe homossexualismo e vasta diversidade de comportamentos sexuais entre os bichos.
Em 1988, depois de deixar a Universidade de British Columbia, no Canadá, o biólogo americano Bruce Bagemihl esqueceu que existiam instituições de pesquisa. Decidido a trabalhar por conta própria, passou 10 anos revirando tudo o que se publicara sobre o comportamento sexual dos animais. Caçou artigos escondidos em jornais obscuros, resgatou trabalhos divulgados havia mais de 200 anos e entrevistou zoólogos para tirar deles dados que eles próprios preferiam não publicar nunca. O resultado são as 750 páginas do impressionante livro Biological Exuberance – Animal Homosexuality and Natural Diversity (Exuberância Biológica – Homossexualidade Animal e Diversidade Natural), publicado em 1999 nos EUA. A obra apresenta provas mais do que convincentes, irrefutáveis, de que o velho modelo “macho com fêmea para criar filhotes” é apenas uma pequena parte da história das espécies animais.
Bagemihl analisou 450 espécies, principalmente de mamíferos e aves, todas praticantes, em maior ou menor grau, de hábitos homossexuais. De saída, ele rechaça a insinuação de que seu trabalho pretende justificar o homossexualismo em humanos mostrando que é natural entre os animais. “Animais fazem muitas coisas que os humanos não acham aceitáveis, como canibalismo e incesto. Nós também fazemos várias coisas que eles não fazem como usar roupas ou cozinhar”, diz. O mérito inegável do livro é ter feito a primeira pesquisa completa sobre um assunto tão fundamental e controverso. A conclusão surpreendeu os biólogos que ainda acreditam que só se faz sexo para produzir filhotes. Com Bagemihl, surgiu uma idéia nova na biologia – a de que, apesar de não gerar descendentes, o homossexualismo faz parte do dia-a-dia de um número enorme de espécies na natureza.
Critérios objetivos
Para fazer uma discussão científica séria e afastar a carga de preconceito que vem à tona sempre que se toca no assunto, Bagemihl foi extremamente cuidadoso, definindo conceitos de modo claro e objetivo. Seu livro contempla 5 variedades de comportamento que ele classifica como homossexual. A 1ª é o cortejo. Inclui todas as formas que os animais empregam para se exibir e conquistar parceiros. A lira, uma ave australiana, faz como o pavão: o macho seduz a fêmea abrindo sua grande cauda. Mas não é só a fêmea que é atraída. Freqüentemente, observa-se um macho exibindo a cauda para outro. E, volta e meia um dos dois termina montando o companheiro.
A 2ª categoria é o que Bagemihl chama de afeição. Inclui beijos, esfregações e carinhos de toda ordem. Macacos bonobos de lábios colados e leões roçando a juba são duas demonstrações de afeto realizadas sempre antes ou depois de uma relação sexual, ou de contatos que, ao menos, deixam os animais excitados. O biólogo foi rigoroso ao excluir formas de carinho que parecem manifestação de sexualidade, mas não são. Entre os macacos, por exemplo, sabe-se que os cafunés e as catações de piolhos não têm carga erótica; servem para manter a coesão social dentro do bando.
Em 3º vem à formação de casais, talvez a categoria mais surpreendente de todas. Mais de 70 espécies de aves realizam casamentos duradouros de indivíduos do mesmo sexo. Essas uniões também são adotadas por 30 mamíferos. Leões e elefantes machos, por exemplo, costumam formar laços mais duradouros que pares heterossexuais.
Em 4º lugar vem a criação de filhotes. Isso mesmo: nem sempre essa atividade envolve a dupla pai e mãe. O pássaro-cantor (Wilsonia citrina), nativo da América Central, é uma espécie na qual um macho atrai o outro por meio do canto, no início do período reprodutivo, e depois eles se juntam. Constroem, então, o ninho e cuidam dos ovos e das crias abandonados por outros indivíduos. Por último, Bagemihl lista o contato sexual propriamente dito. Para ele, sexo é todo momento em que há estimulação dos órgãos genitais. Na seqüência de fotos que abre esta reportagem, as últimas cenas revelam bem mais do que simples afagos entre dois machos.
Nem gay nem lésbica
Com isso Bagemihl acredita ter deixado bem claro que o termo “homossexualismo”, aplicado aos animais, não significa o mesmo que para gente. “O uso da palavra ‘homossexual’ faz muita gente associar a idéia a imagens de gays e lésbicas. Temos que saber separar as coisas”, afirma o pesquisador. O evolucionista Douglas Futuyama, da Universidade do Estado de Nova York, outro estudioso do comportamento animal, concorda. “Não podemos estabelecer conexões entre animais e seres humanos. Não dá para afirmar que os motivos sejam os mesmos. Dito isso, não há dúvida de que o livro traz dados interessantes e novos.”
A existência desses hábitos entre os animais já era conhecida há muito tempo. Mas nunca ninguém os havia reunido em uma pesquisa. Numa iniciativa ainda mais importante, Bagemihl deu a primeira demonstração de que a atração homossexual é muito freqüente. Mas há uma outra ressalva, como aponta o brasileiro César Ades, especialista em comportamento animal da Universidade de São Paulo. “Não podemos jogar tudo no mesmo saco”, diz ele. “As ações citadas no livro são realizadas em momentos diferentes, em situações as mais diversas. Não dá para achar que tudo é uma coisa só e tirar conclusões simplistas.”
Bagemihl sabe muito bem disso. “Tomei a precaução de advertir que há uma imensa variação de comportamentos”, esclarece ele. Ao juntar tudo em um livro só, sua intenção não foi dizer que todos aqueles animais estariam fazendo a mesma coisa, mas, sim, mostrar como é variado o repertório sexual encontrado na natureza.
Não é falta de opção
Para que serve o sexo? Os livros de biologia sempre tiveram uma resposta curta e simples para essa pergunta: gerar descendentes e perpetuar as espécies. Então, como explicar as ligações entre fêmeas e fêmeas ou entre machos e machos que, evidentemente, não levam à procriação? Diversas idéias foram sugeridas. Bagemihl desmonta uma por uma.
Há quem sustente que bichos do mesmo sexo só se envolvem quando não têm outra opção. Por exemplo, quando, em uma região, há muito mais machos que fêmeas ou vice-versa. É o que defende o escritor e biólogo americano John Alcock, especialista em comportamento animal da Universidade do Estado do Arizona. “O macho dirige impulsos sexuais não satisfeitos para alvos inadequados”, diz. Bagemihl admite que isso ocorra com freqüência. Mas prova que não é sempre assim. Ele mostra que, em comunidades de girafas de maioria masculina, as fêmeas disponíveis podem ser ignoradas pelos machos. Na verdade, alguns se recusam a copular com elas e preferem a companhia de um igual. O mesmo acontece entre fêmeas de outras espécies. Casais de macacas japonesas costumam atacar violentamente os machos que se aproximam durante suas relações homossexuais. Ou seja, pelo menos alguns indivíduos preferem companhias do mesmo sexo.
Outros cientistas justificam o homossexualismo atribuindo-o ao confinamento. Animais enjaulados seriam levados a essa prática para aliviar o estresse ou porque sofrem de distúrbio psicológico. Essa teoria era reforçada pelo fato de que, em muitas espécies, até pouco tempo atrás só se documentava atividade desse tipo nos zoológicos. Leões, gorilas, elefantes, muitos golfinhos e aves eram tidos como homossexuais apenas em cativeiro. Nas últimas décadas, porém, pesquisas na natureza mostraram que a homossexualidade fora da jaula só não tinha sido registrada antes por um simples motivo: ninguém procurou direito.
Por fim, alguns pesquisadores associam o homossexualismo animal a desvios morais. Em 1987, o biólogo americano W.J. Tennent publicou um artigo intitulado Nota sobre a Aparente Queda dos Padrões Morais da Lepidóptera. Após descrever o homossexualismo das borboletas do Marrocos, afirmou: “Talvez seja um sinal dos tempos o fato de a literatura entomológica estar no caminho da decadência moral”. O cientista achou imoralidade em borboletas. Atitudes como essas atrasaram, de certa forma, as pesquisas sobre o tema. Em 1979, a Marinha americana financiou uma pesquisa sobre o comportamento das baleias orcas. Pela primeira vez, observou-se homossexualismo entre machos da espécie. Mas a conclusão não consta do relatório de pesquisa. Foi logo vetada pelos militares.
Outra teoria que Bagemihl derruba com seu estudo é aquela que atribui ingenuidade aos animais. Vários estudos afirmam que, em muitas espécies, machas e fêmeas são tão parecidos que eles próprios chegam a se confundir. Dessa maneira se justificaria o comportamento do antílope macho adulto, que corteja companheiros mais jovens mostrando-lhes o pescoço e depois monta neles. Para alguns biólogos, a causa do engano seria a cor marrom dos jovens, idêntica à das fêmeas. Acontece que elas não têm chifres e eles sim, o que torna essa explicação muito discutível.
Outro caso é o do galo-da-serra, uma ave da Amazônia. Os zoólogos diziam que os machos copulavam entre si por não saberem distinguir a fêmea. Mas, em um estudo, um galo montou em apenas uma fêmea e em mais de 100 machos. Se ele não soubesse diferenciar um do outro, era de esperar que acertasse em metade das vezes, e não que errasse todas.
Há também quem afirme que o ato de montar serve para mostrar dominação. Um indivíduo mais importante cobriria o subalterno para deixar claro que é ele quem manda. Bagemihl mostra que, embora essa explicação seja válida para várias espécies, em muitas outras, como a das morsas, os dominantes na realidade são montados pelos dominados! Na mesma lista podem ser incluídos bichos tão diferentes como leões-marinhos, golfinhos, carneiros-silvestres, veados, cabras, hienas, cangurus e pica-paus.
Fazem porque gostam
Depois de afastar as explicações mais comuns ou preconceituosas para a prática do homossexualismo, Bagemihl dá aos fatos uma interpretação original. “Quero me afastar do paradigma de pretender explicar a função de cada comportamento”, declara ele. “Em muitos casos, vê-se com clareza que não há nenhum motivo para aquilo que os animais estão fazendo.” O que ele está querendo dizer é que as espécies nem sempre adquirem características vantajosas para a sua sobrevivência.
Ao contrário, há diversos traços que parecem mais atrapalhar do que ajudar a evolução. É o que Bagemihl procura mostrar em defesa de sua proposta. Ele conta que os ciclos reprodutivos dos machos e das fêmeas dos avestruzes raramente se encontram, e o desencontro dificulta a fertilização. Entre os babuínos da savana, a agressividade dos machos em relação às fêmeas é tamanha que às vezes as matam. Bagemihl também relaciona fêmeas de aves que, logo depois de copular, defecam. Com isso, expelem o sêmen que acabaram de receber, num rito anticoncepcional até hoje mal compreendido.
O infanticídio e o canibalismo de filhotes entre mamíferos são outros rituais difíceis de explicar. Nenhuma teoria mostra com clareza de que maneira esses atos favorecem a reprodução. Para Bagemihl, o homossexualismo pode ter um motivo simples, que costuma ser ignorado pelos biólogos: prazer. “A posição tradicional da ciência sempre foi a de assumir que o prazer sexual não existe para os bichos”, diz Bagemihl. “Mas, em minha opinião, quando estudamos o sexo, temos que revisar os pressupostos que temos.”
O biólogo John Alcock não concorda inteiramente. Ele é um dos que recomendam cautela antes de falar sobre deleite sexual entre animais. “É difícil saber o que passa pela cabeça deles”, diz. Bagemihl concorda. “Como discernir o que uma mosca está sentindo? Talvez nunca sejamos capazes de comprovar a existência de prazer em interações sexuais animais.” O problema, acrescenta, ele é que também não podemos descartar a possibilidade de a satisfação sexual existir.
Muitos exemplos reforçam a tese de que a maioria dos animais faz o que faz porque gosta mesmo. Os mais marcantes são evidentes entre os macacos, cujas reações, por serem bem parecidas com as humanas, são mais fáceis de avaliar. Fêmeas de várias espécies, inclusive dos bonobos, parentes dos chimpanzés, têm orgasmo em relações homossexuais. O fato é comprovado por grande número de testes e acontece, também, em outros mamíferos, como as baleias-brancas, cujos machos se envolvem em brincadeiras “eróticas” que sugerem uma orgia. Observa-se nesses mamíferos um gosto pelos afagos só igualado pelas generosas carícias mútuas das marmotas fêmeas ou pelo namoro dos periquitos machos, que formam casais que permanecem juntos até por 6 anos.
Bagemihl reconhece que a discussão sobre o “erotismo animal” é a parte mais especulativa do seu livro, devido à dificuldade de demonstrar que os bichos também têm sensações de prazer. Tudo bem, raciocina, ele. “Eu gostaria que meu livro se tornasse uma fonte importante de pesquisas futuras, mesmo se muita gente discordar das minhas conclusões.” Nesse ponto, Alcock nem tenta polemizar. “O homossexualismo existe e precisa ser discutido.” À luz da ciência, talvez seja preciso rever nossa visão sobre as categorias de gênero e o papel do prazer sexual na evolução das espécies.
Biological Exuberance - Animal Homosexuality and Natural Diversity - Bruce Bagemihl, St. Martin’s Press, 1999
Por Que o Sexo é Divertido? - A Evolução da Sexualidade Humana - Jared Diamond, Rocco, 1999